Fazendo juz ao lema do blog “Você era Ágil e não sabia!”, quero hoje fazer aqui uma analogia (adoro analogias para exemplificar conceitos. Facilita muito o entendimento). E que creio eu, irá ajudar tanto quem não sabe nada de agilidade a entender um pouco mais da ideia, quanto quem já conhece o método mas talvez nunca o tenha pensado desta forma, fora do ambiente da Tecnologia da Informação.
Desta vez, vou usar a produção de audiovisual para ilustrar alguns conceitos e papéis do Scrum, o Método Ágil mais usado no Mundo por empresas que adotaram a Transformação Digital (já já, explico mais sobre ele. Sua história é bem interessante).
Quem já leu a sessão “Sobre” do meu blog (www.edusantoro.blog/sobre/), sabe que trabalhei mais de 30 anos como produtor de cinema, TV, eventos e efeitos. E esta função é perfeita para fazermos uma correlação com os princípios básicos da filosofia por trás do Scrum.
Senão, vejamos. Usando papéis de um time ágil e seu correspondente em um set de cinema ou TV, temos a seguinte escalação:
No Scrum , existe o P.O. (ou Product Owner, ou “dono do produto”, em tradução literal). Aquele que conhece tudo do produto e sabe como ele deve ser ao fim do processo para atender às expectativas do cliente e dos investidores (“Stakeholders”). No cinema, estamos falando do Diretor, que dá o tom e forma da obra, define palhetas de cores, ritmo na edição, etc.. É o Diretor que define a condução da “contação da estória” porque conhece seu cliente (o público, a audiência), do que ele gosta, o que o fará assistir ao filme ou novela, deixando felizes os anunciantes (que patrocinaram os custos de produção) e os estúdios e emissoras. E lê-se “Anunciantes, estúdios e emissoras” como os equivalentes aos “Stakeholders” no mundo empresarial em que o P.O. atua. E o P.O./Diretor é quem faz a ponte entre eles e o time/equipe de produção.

No Scrum, temos o time de desenvolvedores, que – no audiovisual – seriam os departamentos de figurino, arte, cenografia, câmera, iluminação, som, etc..

E amarrando a coisa toda, auxiliando no controle de prazos de entrega, priorizações, tirando impedimentos e colocando os vários departamentos para se falarem, temos o Scrum Master no Scrum, ou o Produtor para as gravações. Funções tão irmãs entre si que dá pra resumir o papel das duas (cada uma no seu metiê) como “para-raios de problemas”. Todos recorrem a eles quando algo indesejado acontece. E eles acabam resolvendo, mesmo quando não é algo da alçada deles. Descobrem quem tem a solução e colocam as pontas para se falarem. Se, por exemplo, o Figurino quer usar um tecido quadriculado para fazer o vestido de gala da protagonista, mas não sabe se isso causará “batimento” na imagem (tecnicamente, “moiré”), o Produtor entra em cena e coloca o Figurino para falar com a equipe de câmera. Para garantir que não haverá problema, gravam o tecido em várias posições para 1) não gastarem verba com a confecção do vestido se a câmera não “aceita” o tecido e 2) mais importante ainda, para não descobrir que a escolha do tecido foi errada só na hora em que elenco, equipe e cenário estão prontos para gravar, no set de gravação, evitando um desperdício enorme de tempo e dinheiro ao antecipar problemas.

E não para por aí!
As premissas para considerarmos um time como sendo ágil são basicamente as mesmas que aplicam-se para uma equipe de cinema! São elas:
Lean Thinking (ou “pensamento enxuto”): prega a redução de desperdícios, de tempo, dinheiro e energia (o exemplo do vestido acima ilustra bem e é real) e o foco no essencial, muitas vezes posto em prática em forma de priorização (fazer primeiro o que tem maior urgência ou entrega de valor). No audiovisual, é simplesmente montar sua ordem de gravação pelas primeiras cenas do capítulo e pelas que demandam mais etapas de pós produção. Assim, enquanto você produz as cenas do meio do episódio em diante, o editor pode ir trabalhando no material que você já gravou (edição, som, efeitos visuais de computação) em vez de esperar a entrega de TODO o material bruto do capítulo, viabilizando a entrega do produto final num prazo muito menor.

Transparência, Inspeção e Adaptação: Sem transparência do que se espera do produto final e do que cada departamento está fazendo, dificilmente chega-se ao set de gravação com peças que se encaixem (imagina um vestido verde num cenário verde, com charrete verde só porque tinha verde na paleta conceitual do diretor…). Inspeção de prazos e custos são uma constante na preparação e execução de uma cena. E isto guia à adaptação se algo começa a fugir da curva prevista até o fim do trabalho.

Adaptação merece um capítulo à parte. Muitos causos de adaptação aparecerão em posts futuros deste blog (aqui será só uma palhinha). Mas, imagine a quantidade de adaptações a serem implantadas em tempo recorde quando você vai para o sertão nordestino gravar um documentário sobre a seca e fica preso no hotel por 2 dias por causa de um dilúvio? Ou vai para o deserto de Petra, na Jordânia, gravar cenas da novela “Viver a Vida” (TV Globo, 2009) e metade da equipe cai por desidratação (veja em “Jordânia” na sessão “Galeria”) com a umidade a 0%. Caso parecido ocorreu em “Gerra nas Estrelas – Uma Nova Esperança“, com o elenco usando trajes pesados sob o sol do deserto da Tunísia.

Ou, pelo motivo oposto, vai para a Toscana gravar seus típicos campos verdes para a novela “Passione” (TV Globo, 2010) e encontra a maior nevasca que a região já teve? “Guerra nas Estrelas – O Império Contra-Ataca” teve o mesmo problema na Noruega, e boa parte das cenas foi feita no estacionamento do hotel, com a equipe dentro do prédio para não congelar.

Equipes multifuncionais: Segundo o Scrum Guide oficial e atualizado, o time deve possuir todas as competências necessárias para completar o trabalho, com zero (ou quase isso) de dependências externas. No audiovisual, também. Da cenografia à maquiagem, do figurino à fotografia, a ideia é não depender de nada (ou quase nada) que esteja fora daquela célula de produção.
Equipes autogerenciáveis: no Scrum, o time define a melhor forma de completar o trabalho em cada etapa (Sprint/semana de gravação). Idem no audiovisual. Dadas as diretrizes iniciais pelo P.O./Diretor, roupas, cenários, luz são livremente criações de seus respectivos departamentos. Ninguém controlará seus processos. Eles é que têm de sugerir soluções que resolvam o que o Diretor pede, mas que esteja dentro dos escopos de premissas, orçamento e prazo que precisam ser respeitados. No exemplo do vestido, o diretor não diz que ele deve ser costurado com linha 40, Pantone 36, em ponto em cruz. Isso, quem define é a figurinista. Ela tem toda liberdade para propor o desenho e técnica que quiser. Só precisa estar pronto para as provas de roupa e gravação no cronograma previsto.

Cerimônias Scrum
Até mesmo no que são chamados Eventos ou Cerimônias Scrum, a correlação se faz presente:
Sprints: por definição, são eventos de duração fixa para a execução do trabalho. Em Cinema e TV, podem ser consideradas a gravação da semana, por exemplo, que gerará o produto (cenas de um episódio) e aprendizados para a melhoria da forma de gravação nos próximos Sprints/semanas de gravação.
Planejamento da Sprint: serve para definir o trabalho a ser realizado na Sprint. Este plano é resultado do trabalho colaborativo de todo o time de Scrum. No audiovisual, o mesmo ocorre com o Roteiro de Gravação montado, com a anuência de todos os departamentos, já que cada um deles precisa estar pronto para levar ao set todos os ítens sob sua responsabilidade necessários à gravação, baseado na programação de cada dia da semana.

Daily Scrum: a reunião diária que tem por objetivo melhorar a comunicação do grupo e produzir um plano de ação para o dia de trabalho. A “Ordem do Dia” seria seu correlato no audiovisual, onde estão listadas as cenas, elenco, objetos, observações, potenciais problemas e pontos de atenção de cada setor para o trabalho a ser realizado naquele dia. Assim como o ‘quem cuida do que’.
Sprint Review e Sprint Retrospective: O propósito da Review é checar se o trabalho da Sprint foi entregue a contento e planejar o que será executado na próxima Sprint. A Retrospective visa provocar no time uma auto-análise de, baseado na execução anterior, o que poderia ser melhorado na execução seguinte, para aumento de eficácia e melhoria contínua. Em cinema e TV, essas duas etapas se misturam, e não necessariamente ocorrem só ao fim da semana de gravação. Muitas vezes, cenas não gravadas ou rejeitadas pelo Diretor ao final de um dia são “encaixadas” já no dia seguinte, visando entregar ao fim do prazo da Sprint/semana de gravação todo o material que a equipe se comprometeu a entregar.

Viu como tem Agilidade onde nem se imagina, e que seus princípios podem nortear e beneficiar qualquer natureza de processo?
Claro que esta analogia abre espaço para outros questionamentos, como sobre a quem competem algumas responsabilidades “bola dividida” (zonas cinzentas entre papéis), ou mesmo lacunas (funções não descritas ou atribuídas pelo Scrum Guide, cuja inclusão e clarificação fazem falta, dependendo do time onde são praticadas). Mas isso é assunto pra outro post…
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